Duas pedras de gelo

O sol ardia e descolava as sensações de ser e estar perto do que é bom. Sentimentos tenebrosos de fim do mundo se aproximavam e o apocalipse se apresentava como uma possibilidade de a existência da humanidade terminar em uma grande fornalha. 

"O fim está próximo!": anunciava o homem que era, por isso, acusado de louco. Mas, naquele fevereiro, este anúncio estampava as páginas dos jornais mais lidos do país. Estimativas de temperaturas estratófericas que culminariam em impressões de 70ºC, eram anunciadas como título de pesquisa científica conceituada. 

O tempo, o sólido, eu e você - tudo isso derretia-se e tornava-se líquido. Uma amálgama se fazia de nós e tudo tornava um só. Eu já não sabia quem eu era e minha identidade dependia de quem você era. Eu me esquecia dos meus gostos, dos meus sabores, das minhas cores e tudo ficava um cinza meio marrom, como se você misturasse todas as cores de um estojo de tintas. 

Naquele clima escaldante, já não fazia muito sentido para mim, exercer qualquer atividade que remetesse a qualquer grau de "amor-próprio" ou "autoestima". Havia-me sumido o significado de viver, de autonomia, de sustento. Nada mais fazia qualquer sentido. E eu me perdia no espaço daquela cidade pequena e tacanha. 

Sofria com a discriminação, sendo acusada de insana, apenas porque dava ouvidos a minha própria alma. Aquela mulher, estranha, uma baixa e de cabelos castanhos e curtos, me ignorava como se eu fosse culpada por todos os males do universo. 

E aquele homem estranho, com ares de sacerdote, dizia-me: "compreenda ela, não teve instrução" Era um poderoso, figurão. Do alto da sua autoridade quase religiosa, me dizia que era obrigação dar-lhe respeito, atenção e adoração. Aquilo me parecia tenebroso: eu tinha que estar, naquela manhã, mirando-o, durante duas horas e prestar-lhe contas da minha vida, depois. Eu não entendia porque, com aquele calor todo, eu tinha que comparecer como se tivesse uma obrigação de não descansar.

Seguia a semana, de qualquer forma, sempre igual.

 

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